sexta-feira, 19 de março de 2010

Como debaixo dos pés ...

Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam, assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos da cidade que precedeu a que existe.

Como de paes a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão, semelhantes á túnica inconsubtil do Christo, assim a cidade antiga se transmuda imperceptivelmente na nova cidade; e como o octogenário na vizinhança do tumulo não vê á roda de si, nem pae, nem irmãos, nem amigos da infância, mas filhos, mas netos, mas existências todas virentes, todas cheias de vida, e sente com amargura que o seu século já repousa em paz, e espera por elle que tarda, assim o ultimo edificio da cidade que passou, quando pendido ameaça desabar, olhando á roda de si não vê nenhum daquelles que, ahi perto, campeavam senhoris e formosos no tempo em que elle também o era.

Então, quando a noite de inverno ruge tempestuosa, e a chuva susurra nas arvores, e estrepita nas torrentes, ouve-se um ruído súbito, semelhante ao bater no chào de homem de guerra que morre.

É o edifício que solta o seu ultimo arranco, e vae ajuntar mais uma ossada a milhares dellas, que jazem sob os pés da povoação recente.

A obra do homem é como o homem; com a differença, porém, de que o período da renovação do genero humano conta-se por annos, o da cidade por séculos:
mas os annos e os séculos confundem-se e igualam-se diante da vida perpetua do Universo, vigoroso e bello, hoje, ámanhan, daqui, talvez, a milhares de eras, como no dia da creação.

- Trecho do Monge de Cister, do Senhor Alexandre Herculano, varão insígne.

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