quinta-feira, 29 de abril de 2010

Cunhedo (Lafões) e a sua lenda

O sítio é verdadeiramente medonho e lugubre, principalmente áquella hora oppressora do crepusculo vespertino.

A um e outro lado da corrente, dois contrafortes hirtos, arrogantes e altissimos como cabeças colossaes de cyclopes, que uma vegetação desordenada e luxuriante de pinheiros, de salgueiros e de carvalhos cobre como que de uma cerrada barba, hirsuta e impenetrável.

Ao meio, de travéz, a ponte, ameaçadora e funebre na solidez luctuosa do seu granito de séculos, alta de mais de 50 metros sobre o rio, e cuja altura, já de si considerável parecem augmentar desmesuradamente as angustiadas dimensões do leito do rio e a escuridão quasi completa d'aquelle profundissimo recesso.
A luz moribunda do dia que findava, coroando esbatida e branca os cumes das duas montanhas marginaes, vinha morrendo, morrendo cada vez mais para baixo, até cerrar-se sob a ponte numa negrura implacável de catacumba etrusca.

Em frente a Oliveira, na margem direita, lá muito ao alto, os elevados pilares do aqueducto do convento de S. Christovão, agudos, cambos, negros, sobranceiros ás copas do arvoredo, desenhavam-se indecisos, como phantasmas ou como forcas, na diaphaneidade pardacenta do céu (...)

O caminho de Manhouce para Oliveira fazia-se pela ponte do Cunhêdo, ponte lendaria e temida, - que o diabo construira n'uma só noite, e sob cujo arco principal crescia herva de incanto, a uma altura a que ninguem era capaz de chegar.

Seriam 10 da noite quando o bom do Bernardo, pachorrentamente montado n'uma pequena mula de arrieiro, vinha descendo a incosta da serra, caminho do Cunhêdo.

- Corrêra um regalo a festa!
Não houve uma desordem, elle gosára ufano as honras de mordomo, e, para cumulo de sorte, boa maquia lhe coubéra da caixa das esmolas... Tinha bem valido a pena! Passára per sob o aqueducto de S. Christovão, e agora deixava à direita o solitário mosteiro, ali erguido verticalmente em meio dos despenhadeiros, por um admiravel prodigio de equilibrio, de que só teriam sido capazes a paciencia e a tenacidade fradescas.

A noite... como um prégo.
Não havia luar; e as estrellas, poucas e apagadas, derramavam essa claridade irrisoria e quasi nulla, propria das noites de verão.
Principiava a ter medo o Bernardo! Aquelle deserto na sombra aterrava-o, sem elle bem saber porquê. Cedia ao imperio irresistivel da natureza sobre o homem, do gigante sobre o atomo, da enormidade sobre o grão de pó.
Caminhava receioso, confrangido, tremulo, na antevisão instinctiva d'um desastre. Parecia-lhe que da sombra avançavam para elle traiçoeiras mãos homicidas... E incommendava-se a Deus, fervorosamente.

Entretanto, ia em respeito recordando a lenda singular d`aquella ponte.

- Há dois seculos, não existia, mas sim uma outra, de madeira, a jusante da actual. D'ella se serviam quotidianamente os frades, que de S. Christovão se iam para as bandas de Oliveira, a missionar...
De uma vêz, por occasião de um dia horrível de temporal a impetuosa torrente do rio cheio destruíra-a, deixando apenas uma das traves de margem a margem atravessada.
Sobre a noite, - uma noite escuríssima, como a presente, - um frade recolhia de Oliveira, montado na sua burrinha... e o quadrupede saltou miraculosamente o rio, ao longo da trave, sem que o bom do freire désse fé do desmoronamento.
Chegado ao mosteiro, perguntáram-lhe admirados:
- Como atravessáste tu o rio!?
- Ora essa! pela ponte.
- Como, pela ponte, se o rio a levou!...

Aclarado o caso, por milagre o tivéram os do convento.

- Abel Botelho, A Ponte do Cunhedo

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